ESPIRITUALIDADE E ESPIRITUALIDADES
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Espiritualidade é o tema da agenda religiosa nesta
virada de milênio. Em todos os encontros, debates e discussões ela está
presente. Não apenas no universo teológico, mas cultural, empresarial,
econômico, etc. Todos conversam sobre o assunto, falam de suas experiênias,
descrevem seu momento espiritual. Empresas preocupam-se com o estado espiritual
dos seus executivos, cursos e palestras são oferecidos, livros e revistas
especializados no assunto surgem a cada dia. Mas, como diz o Rev. Eugene
Peterson, quando encontramos um grupo de homens conversando sobre colesterol é
porque estão preocupados com sua saúde, alguma coisa não vai bem, doutra forma,
não conversariam sobre o assunto. Quando vemos e ouvimos muita gente
conversando e lendo sobre espiritualidade é um mau sinal, a luz vermelha está
acesa, é um tema que preocupa, que não está de todo resolvido, há inquietações.
Antes de
mais nada é bom lembrar que quando falamos de espiritualidade não estamos nos referindo
apenas à obra do Espírito Santo, mas também aos movimentos do espírito humano
na busca por identidade e significado. Neste sentido podemos falar de
espiritualidades. Não se trata de uma realidade, mas de várias, com expressões
e formas diferentes.
Talvez,
nunca vivemos na história um período tão marcado pela busca do sagrado e por
uma abertura espiritual como vivemos hoje. Isto se vê mais acentuadamente na
cultura ocidental que durante quatro séculos se viu reprimida pela ditadura
racional. O racionalismo determinou o sentido e o significado da realidade
humana e, qualquer expressão que não pudesse ser definida pela lógica da
ciência, era considerada falsa. O que vemos hoje não é outra coisa senão uma
revolução do espírito humano protestando contra a repressão que viveu sob a
bota do iluminismo.
A segunda
metade deste século foi marcada por várias rebeliões e protestos. O movimento
“hippie” dos anos 60 e 70 que protestou contra a repressão moral, a guerra do
Vietnã, consumismo, levantando a bandeira do amor livre, do uso das drogras, da
quebra dos preconceitos e tabus. O movimento feminista que lutou pelos direitos
das mulheres, contra uma sociedade machista que não apenas oprimia as mulheres,
mas impunha um modelo social masculino. No campo político tivemos a
“perestroika” e a “glasnost”, a queda do muro de Berlim, o colapso das
estruturas políticas totalitárias e o surgimento do neo liberalismo com a
promessa de uma economia globalizada. O surgimento dos livros de auto ajuda e a
descoberta da inteligência emocional abriu um novo espaço nos centros que até
pouco tempo atrás eram dominados pelos tecnocratas. No mundo evangélico tivemos
a renovação carismática dos anos 60, o movimento da música “gospel” no final
dos anos 80 e 90, e o surgimento das igrejas neo pentecostais ou pós
pentecostais com as promessas de saúde, riqueza e felicidade instantâneas.
Tudo isto
são manifestações de protesto do espírito humano, e o protesto tinha um
endereço: a opressão do totalitarismo racional. A cultura moderna gerou um
espírito moderno que considerava como verdadeiro somente aquilo que podia ser
comprovado cientificamente e compreendido racionalmente. O protesto veio nos
dizer que existe uma verdade mais profunda do que a leitura superficial do
racionalismo impessoal. Era isto que Pascal protestou quando disse que “o
coração tem razões que a própria razão desconhece”; foi também o que a
revolução psicoterapeuta iniciada por Freud no final do século passado quis
mostrar.
A Reforma Protestante ancorada no renascimento e
posteriormente no iluminismo, trouxe, sem dúvida, uma grande contribuição e um
avanço teológico para o cristianismo. Libertou a igreja da opressão da
ignorância e da superstição do final da idade média. O desenvolvimento de uma
teologia sistemática deu substância para uma fé e uma compreenção mais adequada
da experiência espiritual. No entanto, a exigência de uma fé articulada
racionalmente acabou reprimindo os anseios do espírito e deu a teologia
sistemática o honroso título de “rainha das teologias”. Conhecer a Deus
implicava em dominar os dogmas da fé. Conhecimento passou a ser um atributo
exclusivo da razão. Enquanto que nos primeiros séculos da era cristã, tanto
para os pais da igreja como para os pais do deserto, o conhecimento e o
relacionamento eram inseparáveis, para a era moderna tornaram-se coisas
distintas.
Para os
pais da igreja, conhecer a Deus implicava em ama-lo. A teologia e a oração não
eram tarefas distintas. No período pré-moderno, não vemos uma separação
acentuada entre o conhecimento e relacionamento. Gregório, o Grande do século
VI já afirmava que “amor é conhecimento”. Se olharmos para as obras de Irineu e
Orígenes do segundo e terceiro século, Agostinho e os irmãos da Capadócia do
quarto século; Benedito e Gregório do sexto; Simeão, o Novo Teólogo do décimo;
Bernardo da Clareval e Ricardo de São Victor do décimo-segundo; Boaventura do
décimo-terceiro e Walter Hilton do décimo-quarto, vemos que para todos eles,
conhecimento e amor, teologia e relacionamento eram a mesma coisa. Sua teologia
não era outra coisa senão sua própria experiênia com Deus. “As Confissões” de
Agostinho, as “Regras Monásticas” de Benedito de Núrcia, o “Cuidado Pastoral”
de Gregório, o Grande, as “Orações” de Simeão, os comentários de Cantares e
outros escritos der Bernardo, todos eram expressões de sua fé pessoal, de seu
amor por Deus, de sua vida de oração. Não havia o divórcio entre teologia e
espiritualidade. Pacômio, do século onze afirmou que: “orar é fazer teologia”.
A teologia emergia da oração. Não eram diferentes.
O divórcio
entre a teologia e a espiritualidade surge no fim da idade média com o
escolasticismo. Se de um lado Gregório afirmava no século sexto que amor é
conhecimento, agora Tomás de Aquino no século décimo terceiro distinguia o
conhecimento de Deus que surgia do amor e relação com ele, daquele que era
propriamente científico e dogmático. A partir do século dezesseis e dezessete
vemos que a separação da teologia da vida espiritual ganha corpo na medida em
que ela torna-se cada vez mais subdividida. O iluminismo gerou um novo tipo de
teólogo: aquele que nunca orou.
Chegamos
no final do século vinte, depois de duas guerras mundiais e muitos outros
conflitos de natureza política, econômica e étnica, com um sentimento de
fracasso, vazio e descrença para com os modelos políticos e teorias racionais.
Surgem neste contexto vários movimentos espirituais, muitos de natureza
esotérica, buscando aquilo que as grandes ideologias racionalistas falharam em
proporcionar ao ser humano. É neste contexto que o cristianismo enfrenta seu
grande desafio. De um lado, há o desafio teológico, de preservar fundamentos,
estabelecer alicerces, construir as bases. De outro, o desafio espiritual, de
considerar as demandas e anseios do espírito, o lugar e significado da oração e
do relacionamento pessoal com Deus. Segundo o Prof. James Houston, o desafio
que temos é o de buscar uma teologia mais espiritual e uma espiritualidade mais
teológica.
Precisamos de uma teologia que nos desperte para um
relacionamento pessoal e verdadeiro com Deus. Noutras palavras, uma teologia
que nos aponte o caminho da oração, que seja mais pessoal e afetiva, e não
apenas acadêmica. É lamentável constatar que muitos estudantes que entram para
um seminário motivados por um profundo amor por Deus e desejo de servi-lo,
depois de quatro ou cinco anos de estudo, saem orando menos, afetivamente mais
atrofiados e mais limitados relacionalmente. Uma teologia que não nos motive
para a oração, certamente não cumpre com seu papel.
Deus nos
chama para participarmos da eterna comunhão que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo gozam. Este relacionamento é a razão primeira e última da teologia.
Quando perguntaram para Jesus qual era o maior de todos os mandamentos, sua
resposta apontou para uma dimensão relacional e afetiva: “Amar a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.” Este era o fim da teologia, a
razão de ser dos mandamentos e dos profetas. O apóstolo João nos dá a resposta
mais simples e ao mesmo tempo profunda sobre o conhecimento de Deus. Ao afirmar
que “Deus é amor” ele define a natureza pessoal do Deus Bíblico.
Uma
teologia mais espiritual deve ocupar-se com a conversão das emoções e não somente
com a conversão das convicções. Julia Gatta,
escrevendo sobre o pensamento de Walter Hilton, místico cristão que viveu na
Inglaterra no século XIV e trabalhou este tema da conversão das emoções,
afirma: “...A totalidade do ser está envolvida no processo de união com Cristo.
Tanto nossa mente como nossos sentimentos precisam caminhar em direção à
conversão, à progressiva purificação e, finalmente, à transformação. A
renovação intelectual, se não é mais fácil, no mínimo é um assunto
relativamente mais simples, comparado com a redenção da afetividade. A emoção,
especialmente emoção religiosa, é um fenômeno complexo. O fruto do Espírito não
pode ser igualado a um simples ‘sentir-se bem’... Como em todos os outros
aspectos da natureza humana, a afetividade precisa ser interpretada,
disciplinada e, finalmente, redimida.” O racionalismo preocupou-se com
as convicções. Hoje vemos que a fé tem uma complexidade emocional maior que
imaginamos.
Uma teologia
mais espiritual deve também resgatar a figura do “santo” e do “sábio” ao invés
de valorizar apenas o “teólogo” ou o “PhD”. O “santo” ou o “sábio” que pode ser
também chamado de “pai” ou “mentor” é alguém que, além de possuir o domínio da
ciência, possui também a sabedoria que penetra os segredos da alma. Santo
Agostinho fala do “duplo conhecimento”, de Deus e de nós mesmos. Ele escreve:
“Permita-me conhecer a ti ó Deus, permita-me conhecer a mim mesmo, isto é
tudo”. Para Agostinho, conhecer a Deus implica em conhecer a nós mesmos. Jesus
foi um Mestre que não apenas expunha as Escrituras e revelava a natureza do
Pai, como também expunha o espírito humano e revelava os segredos mais íntimos
do coração. Jesus era um santo, um sábio, um mestre, um mentor. A partir de
Cristo podemos perguntar: Quem é o verdadeiro teólogo? Aquele defendeu uma
brilhante tese de doutorado, escreveu o melhor livro, estudou nas melhores
escolas ou aquele que, em Cristo, dá sentido à vida confusa e desestruturada
das pessoas?
Uma
teologia mais espiritual deve nos conduzir a dar mais valor aos acontecimentos
simples e rotineiros e não apenas aos grandes e glamorosos. Eugene Peterson diz
que temos uma tendência a olhar para a vida com a ótica jornalística. Buscamos
o grande, valorizamos o extraordinário, exaltamos o glamoroso. Mas as páginas
dos evangelhos e as melhores tradições cristãs nos ensinam que a graça de Deus
atua nos acontecimentos simples e rotineiros do dia-a-dia. Precisamos de uma
teologia que nos ajude a perceber e valorizar aquilo que Deus está realizando
em nós. O salmista percebe o valor das coisas pequenas e simples ao dizer:
“Senhor, não é soberbo o meu coração, nem altivo meu olhar; não ando à procura
de grandes coisas, nem de coisas maravilhosas demais para mim. Pelo contrário,
fiz calar e sossegar a minha alma; como a criança desmamada se aquieta nos
braços de sua mãe, como essa criança é a minha alma para comigo”.
Uma
teologia mais espiritual requer também uma linguagem mais espiritual e menos
técnica. Não me refiro a uma linguagem espiritualizada, mas uma linguagem que
desperte os desejos do coração, que convide à intimidade. Grande parte da
Bíblia trabalha com uma linguagem poética ou narrativa. O apóstolo Paulo
procura sempre uma forma pessoal de comunicar a verdade do evangelho. Não se
trata de reduzir ou simplificar. Sempre lutamos contra a preguiça intelectual,
mas precisamos reconhecer que há uma outra linguagem menos técnica, mais
íntima; menos professoral e mais pessoal para comunicar o evangelho.
Se de um lado necessitamos de uma teologia mais
espiritual, que se ocupe com todo o homem, integral, por outro, precisamos
também de uma espiritualidade mais teológica, que estabeleça limites, que
defina os contornos e que dê a base. Reconhecemos que há um protesto do espírto
humano, uma busca pelo íntimo, pelo sagrado, por um significado que transcenda
nossas narrativas racionais, que penetre e toque na alma humana. No entanto,
reconhecemos também que uma espiritualidade esotérica, narcisista, centrada no
ser e no bem estar, mais fundamentada na psicologia e antropologia moderna e
não na teologia, também não irá preencher as lacunas do homem criado a imagem e
semelhança de Deus. Por uma espiritualidade mais teológica, reconhecemos que
necessitamos de:
1. Uma espiritualidade trinitária. A
doutrina da Trindade é o fundamento para uma espiritualidade cristã e
teologicamente bíblica. Ela nos revela um Deus que nos convida para participar
da comunhão que o Pai, Filho e Espirito Santo gozam desde toda a eternidade. Ao
ser criado à imagem e semelhança de Deus, fomos criados para a comunhão
trinitária. Em sua “oração sacerdotal”, Jesus diz: “Para que sejam um, como és
tu ó Pai em mim e eu em ti, sejam eles também em nós…”. O convite de Jesus é
para que a comunhão que o Filho e o Pai gozam seja também compartilhada por
aqueles que foram, em Cristo, reconciliados com Deus. É por meio da doutrina da
Trindade que entendemos a natureza da pessoa e da espiritualidade cristá. Os
pais da antiga Capadócia diziam: “o ser de Deus só pode ser conhecido através
de relacionamentos pessoais e do amor pessoal. Ser significa vida e vida
significa comunhão”. Não há conhecimento possível do Filho sem a participação
do Pai, e nem há possibilidade de conhecimento do Pai sem a revelação do Filho.
Se não entendemos a comunhão no ser trinitário de Deus, não podemos conhecer a
Deus. “Foi desta maneira que o mundo antigo ouviu pela primeira vez que é a
comunhão que forma o ser, que nada existe sem ela, nem mesmo Deus” (John
Zizioulas).
2. Uma espiritualidade cristocêntrica.
O propósito da espiritualidade cristá é o nosso crescimento em direção a
Cristo, ser conformados à imagem de Jesus Cristo. Não se trata de um
ajustamento sociológico ou psicológico, de sentir-se bem emocionalmente ou
socialmente, mas de um processo de crescimento e transformação. Para Paulo isto
significa caminhar em direção à perfeita varonilidade, à medida de estatura de
Cristo. Ele mesmo afirma que a vida encontra-se oculta em Cristo e, por esta
razão, devemos buscar as coisas do alto onde Cristo vive. O fim da
espiritualidade cristã esta numa humanidade madura e completa em Cristo.
3. Uma espiritualidade comunitária. Uma
vez que a natureza de Deus é relacional, a natureza da pessoa regenerada em
Cristo é igualmente relacional. A conversão é a transformação do individuo em
pessoa. O individuo é o ser encapsulado em si mesmo, que se realiza na auto
promoção, é narcisista, concebe a liberdade apenas em termos de autonomia e
independência. A pessoa é o ser em comunhão, que se realiza nas relações de
afeto e amizade, é altruísta, concebe a liberdade em termos de entrega ,
obediência e amor auto doado.
4. Uma espiritualidade centrada na Palavra
de Deus. Como já vimos, o propósito da espiritualidade cristã é o nosso
crescimento em Cristo. É o processo no qual somos transformados pela Palavra de
Deus participando cada vez mais da vida em Cristo. O apóstolo Paulo diz que uma
vez que fomos ressussitados com Cristo, nossa vida está oculta em Cristo.
Portanto, a vida espiritual não é um processo de ajuste aos valores sociais
dominantes, mas um caminho que envolve crise e transformação, onde a tensão
entre a Palavra de Deus e o mundo estarão sempre presentes.
Esta
tensão se dá através de dois movimentos: O primeiro é o confronto entre a
Palavra de Deus e a ordem social, moral e religiosa dominantes. Sabemos que a
leitura e meditação nas Sagradas Escrituras nos consola, edifica e conforta,
mas também nos desafia, provoca e confronta. Este confronto exige um diálogo
constante entre a Palavra de Deus e o mundo que vivemos. Paulo escreve aos
romanos e roga para que não sejam conformados com o mundo, mas transformados
pela renovação da mente. Noutra ocasião, ele fala da necessidade de termos a
“mente de Cristo”, ou seja, pensarmos com os mesmos critérios, valores e
princípios que Cristo pensava.
Um
segundo movimento é o confronto entre a Palavra de Deus e o nosso mundo
interior. Todos nós trazemos do nosso passado lembranças, memórias e imagens
que turvam nossa compreensão de Deus e de nós mesmos. São sentimentos negativos
de abandono, medo, solidão que formam em nós uma auto-imagem também negativa de
inadequação e rejeição, que por sua vez compromete nossa imagem de Deus.
Carregamos conosco mágoas, resentimentos, invejas e ciúmes que nos induzem a
usar a Deus ao invés de sermos usados por ele, que provocam uma relação confusa
e manipuladora ao invés de uma entrega serena e confiante. É preciso deixar a
Palavra de Deus iluminar nosso mundo interior, transformá-lo em Cristo,
restaurar nossa vida à imagem de Deus e resgatar a imagem do Deus revelado em
Cristo Jesus.
A Bíblia como instrumento de transformação e crucificação exige de nós uma aproximação devocional. Reverência e silêncio são posturas básicas de quem deseja ser consolado, confrontado e transformado. É ela quem estabelece o diálogo entre nós e o mundo, seja o mundo exterior ou interior, e nos transforma em Cristo.
5. Uma espiritualidade missionária. A igreja
não tem uma missão que seja sua própria, ela participa na “Missio Dei”, da
mesma forma com Cristo afirma que não tem uma palavra, juízo ou missão que seja
sua, mas que sua comida e bebida consiste em fazer a vontade do Pai e realizar
a sua obra. Oração e missão precisam caminhar juntas. Oramos para que nossos
caminhos sejam convertidos nos caminhos de Deus, para que nossos pensamentos
sejam transformados, para que nossos conceitos de justiça, direito, verdade
sejam conformados com os de Deus. Frequentemente confundimos os nossos
conceitos com os de Deus, achamos que temos uma missão, que conhecemos a
natureza da justiça e do direito divino.
A tentação
no deserto foi uma experiência definidora da vocação e missão de Jesus. Sua
rejeição aos caminhos propostos por Satanás que, segundo Nouwen, apontam para o
imediatismo, o mágico, o popular, o espetacular, para o ser poderoso, próspero,
apresenta uma nova forma de ver a missão e realizar a obra de Deus. Jesus
rejeita as alternativas que derivam do poder, para abraçar um projeto que nasce
da graça e se encarna no amor de Deus para com os homens.
Não há
como separar a espiritualidade de Jesus de sua missão. Num dos momentos mais
críticos de sua vocação, Jesus diz a Filipe e André: “Agora está angustiada a
minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente com este
propósito vim para esta hora”. A agenda da oração de Jesus foi determinada pela
sua vocação e não pelas necessidade pessoais. Qualquer um, diante das angustias
da alma, oraria para que fossem aliviadas, curadas, redimidas. Jesus, no
entanto, sabe para que veio, reconhece que não é ele que determina a pauta de
suas orações. Então ora e diz: “Pai, glorifica o teu nome”. Era a glória do
Pai, o cumprimento do seu propósito, a missão que recebera dele, que determinou
sua oração. O objeto da oração de Jesus era o Pai, não ele próprio. Era a
missão do Pai, não a sua.
O mundo, na virada do milênio, tornou-se mais
espiritual, mais aberto ao mistério, mais psicológico, íntimo, emocional.
Antes, o tribunal que julgava as questões humanas, era o tribunal da razão. Era
preciso estabelecer a verdade pelo argumento da lógica. Cria-se naquilo que era
racionalmente demonstrado. Hoje, o tribunal que julga as questões humanas é o
tribunal das emoções. A verdade é determinada mais pelo sentimento do que pela
lógica da razão. Hoje se crê naquilo que é emocionalmente compensador.
O culto
que herdamos dos reformadores tem como centro as Escrituras e sua exposição
cuidadosamente elaborada com a ajuda das ferramentas exegéticas e
hermeneuticas. O culto moderno transferiu seu eixo central, deixou de lado as
escrituras e a exposição e colocou no lugar o louvor, geralmente com músicas de
letra pouco consistentes e melodias que apelam para as emoções. Além da música,
temos também a ministração de curas interiores, testemunhos de prosperidade e
exorcismos.
Os livros
que mais vendem são os que tratam de temas relacionados com guerra espiritual,
cura interior, conflitos relacionais. O interesse pela teologia, pela reflexão
séria e multidisciplinar, pelo estudo cuidadoso das escrituras vem rapidamente
perdendo seu espaço e apelo para as novas gerações.
Certamente,
o saudosismo não nos ajudará a responder as questões que se colocam diante de
nós. A resposta não está em voltar atrás, em redimir o passado. Temos novas
perguntas diante de nós, novas demandas pastorais e novos desafios teológicos.
É preciso reconhecer que por muito tempo reduzimos o homem todo a um ser
racional, que o divórcio da teologia sistemática com a teologia espiritual nos
conduziu a uma espiritualidade mais cognitiva e menos afetiva e pessoal.
Precisamos reconhecer que o propósito da teologia não é o de dar-nos mais um
título de Phd e tornar nossa linguagem mais técnica e confusa, nem tampouco
elevar nosso ego e tornar-nos mais narcisistas. O propósito da teologia é o de
nos tornar sábios para a salvação, de dar sentido (emocional, psicológico,
moral e intelectual) a vida. O verdadeiro teólogo não é aquele que escreveu
livro mais volumoso, a tese mais complexa, o discurso mais erudito, mas aquele
que encontrou o caminho da comunhão com Deus, que aprendeu a amar o Senhor de
todo coração alma e força, que ama ao próximo como a si mesmo, que ora, que
conhece a Deus e conhece a si próprio e que ajuda os outros a encontrarem o
sentido de suas vidas e tornarem-se sábios para a salvação em Cristo.
© Fraternidad Teológica Latinoamericana - www.fratela.org
Revista electrónica Espacio de Diálogo, (Fraternidad Teológica
Latinoamericana), núm. 1, septiembre-diciembre del 2004, www.cenpromex.org.mx/revista_ftl/num_1